Confissões de Agostinho de Hipona
A ve
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Pintura que retrata uma das mais universalmente conhecidas 'histórias' sobre Agostinho. - O anjo e a Santíssima Trindade. |
Deus tudo penetra
'Para vós, Senhor a cujos olhos está patente o abismo da consciência humana, que haveria em mim oculto, ainda que vo-Lo não quisesse confessar? Poder-Vos ia ocultar a mim mesmo, mas não poderia esconder-me de Vós. Agora que os meus gemidos são testemunhas de que me desagrado, Vós iluminais-me, agradais-me, e eu de tal modo Vos amo e desejo que já me envergonho de mim.
Desprezo e escolho-Vos. Só por vosso amor desejo agradar-Vos a Vós e a mim.
Senhor, conheceis-me tal como sou. Já Vos disse com que fruto me vou confessando a Vós. Não Vos faço esta confissão com palavras e vozes de carne, mas com palavras da alma e gritos do pensamento, que Vossos ouvidos já conhecem. Quando sou mau, o confessar-me a a Vós só significa que não atribuo nada a mim, porque abençoais, Senhor, o justo mas antes o justificais da impiedade. Assim, ó meu Deus, a confissão que faço da vossa presença é e não é em silêncio. É em silêncio quanto as palavras; mas é em clamor quanto aos afetos. Nenhuma verdade digo aos homens que Vós já antes ma não tenhais ouvido. Nem me ouvis nada que já antes mo não tivésseis dito.'
O orgulho
'Terei também essa miséria como
desprezível? Haverá algo que possa restituir-me a esperança, a não ser tua
conhecida misericórdia, que começou a me transformar? Sabes o quanto já me
transformaste; curaste-me primeiro da paixão da vingança, para perdoar-me
também todos meus pecados, curar minhas fraquezas, resgatar minha vida da
corrupção, conservar-me na piedade e misericórdia, e saciar dos teus bens meu
desejo. Derrubaste meu orgulho pelo temor, dobrando minha cerviz a teu jugo.
Agora eu trago o teu jugo, e o sinto suave, como prometeste e
cumpriste.
Na verdade, teu jugo já era suave, mas eu não o sabia quando receava tomá-lo
sobre mim.
Mas, Senhor, tu és o único que
sabe mandar sem orgulho, porque és o único Senhor verdadeiro, que não tem
senhor! Diga-me, terá cessado em mim, se isso pode acontecer nesta vida, esta
terceira espécie de tentação, que consiste em querer ser temido e amado pelos homens,
com o único fim de obter uma alegria que não é alegria? Que vida miserável, que
arrogância indigna! Aí está o principal motivo porque não te amamos e tememos
piamente. Por isso resistes aos soberbos, enquanto dás tua graça aos humildes.
Trovejas contra as ambições do mundo, e faz abalar as montanhas até suas
raízes.
Ora, como é necessário, para se
adequar à sociedade, fazer-se amar e temer pelos homens, o inimigo de nossa
verdadeira felicidade nos alicia, e por toda parte semeia seus laços gritando:
“Bravo! Muito bem!” – para que, ávidos, recolhamos as lisonjas e nos deixemos incautamente
enredar. Seu intento é que deixemos de encontrar nossa alegria na verdade, para
buscá-la na mentira dos homens; estimula em nós o prazer em nos fazer temer e
amar, não pelo teu amor, mas em teu lugar. Com isso nos tornamos semelhantes a
ele, não unidos na caridade, mas partilhando de suas penas. Ele quis fixar sua
morada no aquilão (vento gelado do norte), para
que nós,
nas trevas e no frio, servíssemos o perverso e sinuoso imitador de teu poder.
Nós,
Senhor, somos teu pequeno rebanho: sê nosso dono. Estende tuas asas, para nosso
refúgio. Sê nossa glória; que nos amem por tua causa, e que tua palavra seja
observada por nós.
Quem busca o louvor dos homens,
quando tu o r
eprovas,
não será por estes defendido quando o julgares, nem poderá subtrair á tua
condenação. Mas quando não se louva um pecados pelos desejos de sua alma, nem
se abençoa quem pratica iniqüidades, mas te louva um homem pelos dons que lhe
concedeste, se ele se compraz mais no louvor do que no dom que lhe atrai os
louvores,
tu o reprovas, a despeito dos louvores que recebe dos homens. E quem o louva é melhor
do que é louvado, porque um se agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se
com o dom do homem'
O peso do amor
Mas o Pai e o Filho, não
pairavam também sobre as águas? Se os imaginamos como um corpo pairando no
espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo ao Espírito Santo. Se porém entendermos
por isso a excelência imutável da divindade acima de tudo o que é transitório,
então o Pai, o Filho e o Espírito Santo pairavam igualmente sobre as águas. E
por que só se menciona o Espírito Santo? Por que se menciona apenas a seu
respeito um lugar onde estava, ele que, no
entanto,
não ocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em
teu dom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar.
É para lá que o amor nos arrebata, e teu Espírito levanta nossa humildade para
longe das portas da morte.
A paz, para nós, reside na tua
boa vontade. Os corpos tendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio;
mas um peso não tende só para baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O
fogo sobe, a pedra cai. Cada um é movido por seu peso, e tende para seu justo
lugar. O óleo, lançado à água, flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos
são impelidos por seu peso a procurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que
não estão em seu lugar se agitam; mas quando o encontram, repousam.
Meu peso é meu amor; para onde
quer que eu vá, é ele quem me leva. Teu dom nos inflama e nos eleva; ardemos e
partimos. Subimos os degraus do coração e cantamos o cântico gradual. É o teu
fogo, o teu fogo benfazejo que nos consome e nos eleva, enquanto subimos para a
paz de Jerusalém celeste. Regozijei-me ao ouvir essas palavras: “Vamos para a
casa do Senhor!” – Ali nos há de instalar tua boa vontade, e não desejaremos
nada mais do que permanecer ali eternamente.
A
verdadeira felicidade
'Longe de mim, longe do coração de teu servo,
Senhor, que a ti se confessa, a idéia de encontrar a felicidade não importa em
que alegria! A felicidade é uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas
àqueles que te servem por puro amor: tu és essa alegria! Alegrar-se de ti, em
ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os que imaginam outra
felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira. Contudo, sempre há
uma imagem da alegria da qual sua vontade
não se afasta.'
Felicidade e verdade
'Poderemos então concluir que nem todos desejam ser
felizes, pois há aqueles que não querem buscar em ti sua alegria, tu que és a
única felicidade? Ou talvez todos a queiram, mas, como a carne combate contra o
espírito, e o espírito contra a carne, e com isso se contentam.
Porque não querem com força bastante aquilo que não
podem, para obtê-lo. Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na
verdade ou no erro; ninguém hesita em declarar que preferem a verdade, como em
dizer que querem ser felizes. É que a felicidade é a alegria que provém da
verdade. E essa alegria é a que nasce de ti, que és a própria Verdade, ó meu
Deus, minha luz, saúde de meu rosto! Todos querem essa vida, a única feliz,
essa alegria que se origina na verdade.
Encontrei muitos que gostam de enganar, mas ninguém
que quisesse ser enganado. Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde
conheceram a verdade? Visto que não querem ser enganados, também amam a
verdade, e desde que amam a felicidade, que nada mais é que a alegria
proveniente da verdade, certamente também amam a verdade; e não a amariam se
não retivessem dela, na sua memória, alguma noção. Por que, então, não se
alegram com ela? Por
que não são felizes? Porque se empolgam demais com
outras coisas, que os tornam mais infelizes do que a verdade, de que se
recordam fracamente, e que os faria felizes.
Há ainda um pouco de luz entre os homens: caminhem,
caminhem, para que as trevas não os surpreendam. Mas por que a verdade gera o
ódio? Por que os homens olham como inimigo aquele que a prega em teu nome, uma vez que amam a felicidade,
que mais não é que a alegria nascida da verdade? Talvez por amarem a verdade de
tal modo que tudo de diferente que amam, querem que seja verdade; e, não
admitindo ser enganados, também não querem ser convencidos de seu erro. Desse
modo, detestam a verdade por amarem aquilo que tomam pela verdade. Amam-na quando
ela brilha, mas odeiam-na quando os repreende e como não querem ser enganados,
mas enganar, eles a amam quando ela se manifesta, mas a odeiam quando ela os
denuncia. Porém ela os castiga; não querem ser descobertos pela verdade, mas
esta os denuncia, sem que por isso se manifeste a eles. É assim o coração do
homem! Cego e lerdo, torpe e indecente: quer permanecer oculto, mas não quer
que nada lhe seja ocultado. Em castigo, sucede-lhe o contrário: não consegue esconder-se
da verdade, enquanto esta lhe continua oculta. Contudo, apesar de tão infeliz, prefere
encontrar alegrias na verdade que no erro.
Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações,
se alegrar somente na Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.'
Solilóquio
de amor
'Tarde te amei, Beleza tão antiga
e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te
procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste. Estavas comigo,
e eu não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria se não
existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez.
Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume,
respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti.
Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama.'
Fonte bibliográfica de suporte: As confissões, Santo Agostinho/ Os pensadores. Editora Nova Cultural