Zygmunt Bauman é um sociólogo de ascendência judaica nascido na polônia com larga reputação e grande produtividade intelectual em todo o mundo, que lendo a evolução das sociedades humanas através da história, percebeu a ausência de substância e consistência nas atuais relações interpessoais, um movimento de abandono dos valores coletivos e uma forma de viver a vida mais pela intensidade e pelo volume em diversidade em detrimento da longevidade, e, para tal, cunhou a metáfora "mundo líquido". Neste mundo, as pessoas são tratadas como objetos e inexiste a disposição de formação de círculos de amizades ou comunidades de afeto mútuo; esta 'coisificação' das pessoas, oferece-lhes a mesma estabilidade dos produtos que a cada dia descartamos com mais voracidade. Na "modernidade líquida", título de um de seus livros, Bauman escancara com clareza e elegância filosófica a estrutura social do mundo moderno ou pós-moderno onde subjetividade, individualismo, relativismo são as vozes predominantes e o meu direito que outrora ia até o início do direito alheio, agora também e primordialmente constrói uma barreira de separação, as vezes por temor mútuo, desconfiança ou preconceitos primitivos. A metáfora da liquidez refletindo um pensamento anterior, sentencia claramente, tudo que não é sólido, se desmancha no ar., tudo que não tem consistência, logo se esvai.
A metáfora da liquidez de Bauman infelizmente encontra acolhida e eco também na mentalidade cristã pós-moderna, porque esta, também submeteu a sua origem e inspiração bíblica à relativização de uma releitura e de reinterpretação; porque a Bíblia como farol e bússola do cristão concorre em posição de inferioridade com uma filosofia eclesiástica barata revestida de prosperidade e autoestima, uma visão do criador em função da criatura; os pastores do rebanho de Cristo se apoderaram das ovelhas com a fúria de lobos devoradores. Não estranho portanto, encontrarmos uma cristandade avulsa à mensagem real de Cristo e uma nova forma de exercício da fé compartimentada e de interesses pessoais. Cristo para o homem pós-moderno é uma propriedade subordinada ao indivíduo submisso geograficamente e em potencialidade, ele tem pertencimento onde e no alcance que lhe é permitido.
Jesus Cristo utilizou a metáfora da semente que cai em terra produtiva para referir-se aos crentes que permaneceriam firmes na fé e que dariam frutos mesmo em face das contenções do mundo, mas, é incerto o futuro daqueles com quem nos relacionamos em nossas comunidades de fé e talvez até de nós mesmos, se por conveniência social ou por fraqueza moral diminuímos ou omitimos nossa crença, nos justificamos em face do questionamento alheio, (sou cristão sim, mas, sou diferente do convencional, reconheço a legitimidade do aborto, da união homoafetiva, da liberdade sexual e outros) ou pior, assentamo-nos na roda dos escarnecedores para evitar o "constrangimento" de nos revelarmos cristãos. Em face da crise de relevância social que o cristianismo vive atualmente, crise esta provocada por fraquezas de seus próprios adeptos, sentimos uma tendência pessimista ao questionamento de Jesus: "...Quando o Filho do Homem vier encontrará fé na terra?_ Quando falamos de crise de relevância do cristianismo, chamamos atenção para a queda de representatividade da fé cristã na sociedade, sobretudo no período que decorre da Reforma Protestante até hoje; o quanto de cristianismo foi retirado e deixou de ser refletido nas leis, nas instituições e no pensamento humano. A cada dia, torna-se mais improvável repetirmos fenômenos como Martinho Lutero, João Calvino, Jonathan Edwards, George Whitefield e outros, ainda que a situação e o ambiente que os propiciaram, sejam assemelhados ou piores. Cabe o questionamento se as diferenças que caracterizam o nosso distanciamento desses grandes soldados da fé está mais na providência de Deus em assim torná-los e a disposição diligente deles em se fazer merecedores, ou, mais em nossa propensão para a mediocridade e o contingenciamento do Espírito que nossas ações providenciaram.
Talvez devamos aceitar uma outra incidência consequente da modernidade líquida identificado por Bauman; Hoje recebemos todos uma torrente de informação através das mais diversas mídias proporcionadas pela tecnologia, e, as confundimos com formação, formação intelectual. O homem mediano de hoje tem acesso no período de um ano, a muito mais informação que a maioria dos grandes pensadores anteriores à modernidade tiveram em toda a sua vida, mas, isto não faz dos primeiros nem a mais medíocre sombra destes ultimos quanto ao conhecimento e a sabedoria. Voltando-nos para a vida cristã, a forma e a conduta de vida que possibilitou pregadores como João Crisóstomo ou como Spurgeon parece não ter mais espaço no cotidiano acelerado de hoje com suas obrigações relacionais e dietas de uso saudável do tempo. Estamos rendidos ás demandas de tal forma que não importa por exemplo, quantos livros leiamos, quantos congressos e conferências realizemos e quantas especializações façamos, no final apenas amontoamos conteúdo volátil e de breve validade. Aqueles grandes mestres que nos inspiram não apenas mantiveram o foco em seus objetos de estudo, eles viveram aquilo que nos legaram; sem negar jamais a iluminação divina sobre eles, a Palavra de Deus foi para eles tão essencial como o fôlego de suas vidas.
De toda forma, não devemos nos assombrar ou lançar imprecações contra os avanços da modernidade ou pós-modernidade pelo fato de nos faltar a destreza de compreendê-los e usá-los em favor do Evangelho uma vez que precisamos antes de tudo promover em nós mesmos o conhecimento de nós mesmos (somos pecadores regenerados destinados à glória de Cristo, mas, somos ainda compulsivamente falíveis), para só depois, situarmo-nos num ponto de equilíbrio entre a modernidade do mundo e as tradições imutáveis da fé bíblica. Creio que será saudável e profícuo substituir os engessamentos litúrgicos e rituais por uma agilidade que provoque movimentação e diálogo mesmo no decurso de certos momentos da celebração aos quais estamos mais acostumados, numa forma que combine espontaneidade e ordem e que se mova em unidade para o alvo da adoração, que toda ação e pensamento seja para a glória de Deus.
É necessária uma doação mais intensa e integral da igreja à um culto vivo e vivificador para resgatar ou capturar dos vícios modernos (egoísmo, hedonismo, autossuficiência aquele membro nominal da igreja que não atenta ao serviço religioso, nem lembra qualquer fato ou tema desenvolvido na ultima reunião; promover o envolvimento daquele que se enclausura em um mundo a parte, porque enxerga hipocrisia no seu próximo e adota o isolamento como terapêutica; para reunir toda uma comunidade de fé em torno do Evangelho autêntico é necessário a humilhação do intelecto no todo da igreja em torno da Verdade, e, para isto, a Verdade precisa ser algo ao mesmo tempo inexplicável e crível, precisa envolver temor e esperança. Tais potencialidades só são encontradas na textualidade casta do Evangelho. A história da humanidade prova que a crença, a fé é a mais forte e a única força da qual o homem não consegue abrir mão. Se Deus lhe deixa de ser algo verossímil, o homem colocará algo, uma idéia, um elemento fenomenológico ou alguém em seu lugar, para suprir a lacuna deixada por Deus.
Hoje existe um vasto "mercado de divindades" à disposição do homem, dos quais se destaca o esoterismo oriúndo do Oriente, mas, o que o põe em ênfase é uma ausência do tolhimento das vontades individuais e a autodeterminação, o que o torna semelhante a tantos outros movimentos de época cíclicos e repetitivos já vividos. Em síntese, o homem continua lutando por independência e liberdades, mas ele nunca deixa de buscar o conforto e o refrigério para o espírito. Então, a modernidade não traz novos adversários à proclamação e caminhada cristã, apenas reveste-se de novas maneiras, novas cores. Penso que a luta pela simples obstinação contra a modernidade dos costumes, cultura e dos formatos sociais é uma contenda inglória que nos arranca forças e tempo sem efeito. Também não devemos sob hipótese nenhuma, sacrificar o testemunho cristão para conquistarmos atualidade. Muito mais prudente e de eficácia comprovada, é oferecermos uma pregação e uma liturgia igualmente saudáveis para a transformação de libertação do pecado, encarando-os da forma como este hoje se apresenta, sem atentarmos tanto para formatos exteriores que em nada comprometem ou diminuem a adoração individual e mais ferem às nossas predileções. Se meu vizinho no banco da igreja usa brincos ou possui tatuagens e anda desgrenhado, isso em nada me torna imediatamente mais 'santo', uma imagem exterior nem sempre reflete-se igual por dentro; não devemos nos permitir ser um embaraço para a entrada à igreja de marginalizados em busca de acolhida momentânea ou já sob a soberana providência de Deus, em busca de regeneração. Por mais que isso nos desafie a tolerância e preconceitos, miseráveis, dependentes químicos, promíscuos e homossexuais. O fato de seus pecados serem mais visíveis que outros não os torna piores, e, a forma como os acolhemos e os tratamos, expõe de forma mais flagrante o caráter cristão e a relevância da igreja. A tarefa de denúncia do pecado e da oferta de salvação de Deus por Cristo, deve andar em sintonia fina com o amor prático e latente da igreja.
Por fim, para enfrentar a crise de liquidez que atinge a igreja ou a própria fé cristã, não se faz necessário adaptá-la aos supérfluos sabores humanos, se reinventando a cada instante, isso a igualará a produtos religiosos expostos na prateleira de vaidades do homem. A oferta de acolhida e purificação da igreja não tem sua atração ou poder em si mesma, ela vem de Deus, que formou o homem e teceu-lhe a alma com uma especial distinção das demais criaturas que só Ele mesmo compreende e governa exaustiva e soberanamente, num instante mais que surpreendente Ele nos provará a fidelidade de sua Palavra ao dobrar os joelhos do mais recalcitrante pecador.
*O enfoque deste texto e a forma como ele desenvolve algumas de suas provocações reformistas, está localizado em uma igreja onde não se consegue mais estabelecer os padrões clássicos e conservadores de liturgia e culto.